
Quebra Nozes Quebra Nozes, pela CNB, Teatro Camões
Será difícil pensar no Natal sem associá-lo ao Quebra Nozes, o bailado inspirado no conto de E. T. A. Hoffman, Quebra Nozes e o Rei dos Ratos (1816) adaptado por Alexandre Dumas pai em 1845. Mais tarde, Marius Petipa inspirou-se nesta adaptação literária para a primeira versão coreográfica, no ano de 1892, associando-se a Piotr Ilitch Tchaikovski. O Quebra-Nozes de Tchaikovski viria a ser a primeira partitura da história da música a utilizar a celesta, instrumento que o compositor descobriu em Paris. Este continua a ser nos dias de hoje o bailado mais interpretado nesta altura festiva.
O Quebra Nozes conta a história da pequena Clara que recebe como presente de Natal um quebra-nozes, que se transforma em príncipe e a faz sonhar e viajar pelo Reino dos Doces e um mundo de fantasia. É deste universo que André e. Teodósio, encenador e dramaturgo, parte e cria uma nova leitura: Quebra Nozes Quebra Nozes.
Quebra Nozes Quebra Nozes, pela Companhia Nacional de Bailado (CNB) é uma adaptação contemporânea desse bailado clássico. A estrutura narrativa original está presente, bem como a música (interpretada pela Orquestra Sinfónica Portuguesa), mas como os contos não são intocáveis e quem os conta acrescenta pontos (já diz o ditado), este é reinterpretado. Como não podia deixar de ser, a dramaturgia da autoria de André e. Teodósio está repleta de excentricidades, sátiras, ironias. “Decididamente era a partir disto que queria trabalhar. Pensar a ideia de definição da subjectividade (do mundo, das vidas, dos corpos, das linguagens, das sensações, etc.) não como sendo uma coisa definida cartesianamente mas resultante ou emergente do laissez-faire constante das nossas actividades complexas na sua definição (…)”, explica o dramaturgo (na folha de sala). Esta é uma leitura hiperbólica dos dias de hoje, também eles repletos de excessos tecnológicos e distracções visuais e sonoras. A coreografia, essa clássica, da autoria de Fernando Duarte, lembra-nos que, ainda assim, estamos perante um bailado romântico, um conto de natal, com o peso histórico que tem e a sua aura sonhadora.
O título em duplicado é traduzido num espectáculo que aos olhos das crianças conta uma história e aos olhos dos adultos revela outras minudências e ousadias. Se, por um lado, os ratos continuam a fazer parte do elenco, por outro estes são as conhecidas personagens Mickey e Minnie e outras referências infantis, nomeadamente à Disney; se por um lado o quebra-nozes não deixa de ser um boneco oferecido à pequena Clara, por outro já não é um soldado, mas antes uma caixa gigante de pastilhas pez com cabeça de Ken; se por um lado o sonho de Clara a leva igualmente ao Reino Mágico repleto de doces, por outro este é um reino pop, inebriado em marcas, publicidade e distracções inúmeras. Quebra Nozes Quebra Nozes é uma desconstrução visual – não narrativa – do bailado original: os tutus nem sempre estão na cintura (de mencionar a originalidade dos figurinos, de João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira), os flocos de neve são rebuçados, o reino dos doces é nomeado Candy Darling (referência à actriz americana transsexual, musa de Andy Warhol), e os cenários são tudo menos óbvios. Não fosse esta uma sátira aos dias de hoje, não encontraríamos ainda a tia (personagem) meio confusa, voyeur daquela história que se dá, a tirar selfies.
E no final… “Estava tudo na tua cabeça, Clara. Como nas nossas. Cabeças por preencher. Olhos que apreendem as coisas sempre à sua maneira, pestanas batidas a ritmos diferentes. Porque cada um faz o seu mundo.”, assim se lê na folha de sala (texto de André e. Teodósio). Se, à partida, não terá sido tarefa fácil reinterpretar um clássico, com tudo o que isso poderia implicar (e André e. Teodósio esteve relutante em aceitar o convite de Luísa Taveira, directora da CNB, para encenar este espectáculo), o resultado final mostrou-se não só de entretenimento, como também desafiador da imaginação infantil. E porque no Natal todos somos novamente crianças, também adultos terão saído a reflectir… nem que sobre qual o chocolate ou doce a experimentar.
Quebra Nozes Quebra Nozes, pela Companhia Nacional de Bailado, segue agora em digressão e será apresentado dia 28 de Dezembro pelas 16h, no Centro Cultural Vila Flor em Guimarães.
Texto por Maria Palma Teixeira