
Estações da Cruz (Kreuzweg)
Pouco após a estreia de Timbuktu, chega-nos uma obra europeia que analisa uma forma de extremismo que vive aqui ao lado. Nela inscreve-se a história de Maria (brilhantemente interpretada pela estreante Lea van Acken), a mais velha de quatro irmãos educados no seio de uma família ultraconservadora que advoga os princípios da Sociedade de S. Paulo, uma linha dura do catolicismo que recusa as determinações do segundo Concílio do Vaticano. O argumento, escrito em parceria pelo realizador e pela sua irmã Anna Brüggemann, descreve a jornada de Maria, a severidade do seu contexto familiar e a luta interna entre as suas convicções religiosas e impulsos próprios da sua juventude.
Em Estações da Cruz, catorze longos planos fixos (sem banda-sonora e quase sem movimentos de câmara), filmados com uma fotografia belíssima que imediatamente nos transporta para a estética da arte sacra, compõem a estrutura narrativa do filme evocando as catorze estações da Via Sacra, onde o drama da protagonista é equiparado às últimas horas de Cristo e ao caminho que conduziu à sua morte na cruz. Aos católicos, as estações da cruz lembram a forma como Cristo viveu e morreu disposto ao sacrifício e à abnegação em nome da salvação do espírito e da absolvição dos pecados do mundo. Os catorze verdes anos de Maria são sugestivos das suas etapas de provação, já que também ela persegue um ideal de salvação espiritual embebido numa lógica de provação cristã. É esse o ensinamento arrepiante do primeiro quadro – onde o título de Jesus é condenado à morte adivinha um desenrolar narrativo pouco auspicioso: numa espécie de encenação da última ceia um jovem padre instrui um grupo de jovens para o Crisma, ensinando-lhes que o mal caminha no meio dos homens e que dele terão que se defender a todo o momento através de acções de purificação do espírito. Por isso, Maria procura oportunidades de abdicação nos vários aspectos do seu quotidiano, acreditando que a protegem do mal e a aproximam de Deus. Convencida de que o seu sacrifício pode salvar o irmão mais novo de um mutismo inexplicável, Maria planeia oferecer a sua vida a Deus em troca dessa graça. O seu determinismo coloca-a numa espiral de degradação física e espiritual que nada poderá travar. Ela, que tem o nome da mãe de Cristo, quer ser santa – e esse é o mais terrível dos seus pecados.
A câmara de Dietrich Brüggemann é adequadamente austera e de um formalismo tão radical como o drama que descreve. Há uma frieza qualquer na progressão da narrativa, uma exposição lenta que não incorpora uma condenação dos factos mas apenas a contemplação do drama de uma rapariga a quem o fervor religioso destrói a meninice – este aspecto não deixa de ser digno de nota, já que os argumentistas cresceram num ambiente semelhante, do qual se libertaram, e seria por isso tentador ceder a um julgamento directo. Mas a primeira reacção do espectador será mais de estupefacção do que de crítica. É certo que a experiência de Maria não é representativa de todos males do catolicismo ou da fé exacerbada, mas a sua história coloca questões transversais a muitos credos – os limites do culto, a aceitação incondicional de cânones religiosos, o grau de abnegação e de renúncia, a conceptualização do pecado, a vivência da culpa, a noção de castigo e penitência, a noção de propósito ou de missão.
Urso de Prata para melhor argumento e o prémio do Júri Ecuménico no festival de Berlim, Estações da Cruz pode ser visto, numa visão mais simplista, como uma pura analogia ao destino de Cristo ou uma análise do catolicismo radical em rota de colisão com a razão individual e com a sociedade moderna, mas há um subtexto que transcende essa temática. Partindo dela, o filme consegue um distanciamento que promove um comentário mais amplo acerca dos perigos da cegueira da fé – um tema que lamentavelmente está na ordem do dia, e não apenas no cinema. É um filme sobre religião que sublinha a permeabilidade de qualquer forma de dogma religioso ao fanatismo e à irracionalidade. Se em extremismos de outros credos, como os que todos os dias alagam os jornais e televisores, as consequências são de outra ordem e escala, o resultado individual e familiar do radicalismo aqui exposto não é necessariamente menos perturbador.