
Flashback Especial: “Mudar de Vida” – uma homenagem a Maria Barroso
Desde que faleceu no dia 7 de Julho de 2015, Maria de Jesus Barroso foi lembrada e homenageada com muito carinho um pouco por todos os sectores da sociedade portuguesa, da esquerda à direita, da política ao ensino, passando pela representação. Maria de Jesus Barroso teve a mais rica das vidas. Como qualquer um dos meus colegas da altura, tive o prazer de conversar várias vezes com Maria Barroso, sempre querida e atenciosa, no Colégio que frequentei, desconhecendo a vida que aquela senhora tivera e que foi a dada altura vista como heroína, como símbolo feminino anti-fascista, expressado, além da natural ligação que tinha aos homens fortes da oposição, de onde se destacava o marido Mário Soares, preso político no momento do seu casamento com Maria Barroso em 1949, pela sua incursão pelas artes representativas e é nessas que se foca esta nossa homenagem.
Foi cinco anos antes de casar com Mário Soares, em 1944, que Maria Barroso se estreou no teatro no palco do D. Maria II na companhia de teatro Rey Colaço-Robles Monteiro. Enquanto actriz de teatro teve uma carreira pontuada por altos e baixos, acabando por ser expulsa por declamar poemas subversivos anti-regime, de onde saiu como heroína, no segredo daqueles que com ela concordavam. No cinema, a carreira de Maria Barroso é curta mas significativa (apenas 5 filmes), tendo-se limitado a trabalhar com Paulo Rocha e Manoel de Oliveira, dois dos nomes mais importantes da história do cinema português.
No passado dia 3 de Setembro, a Cinemateca Portuguesa prestou homenagem a Maria Barroso enquanto actriz de cinema com a exibição da cópia restaurada de Mudar de Vida, o segundo filme de Paulo Rocha (1966). Com a presença dos filhos e da também protagonista do filme Isabel Ruth, entre outros, contaram-se histórias sobre a vida de Maria Barroso enquanto actriz, o seu significado na cultura artística da época e episódios da produção e filmagem de Mudar de Vida, incluindo um episódio em que João Soares, o filho, recordou o momento em que acompanhou a mãe, certa vez, ao Furadouro para as filmagens: Maria Barroso conduziu determinada o carro até essa aldeia piscatória, perto de Ovar (Aveiro), onde interpretou a personagem de Júlia. E aí se procedeu à projecção do filme.
Mudar de Vida retrata o regresso de Adelino, interpretado por Geraldo Del Rey, da Guerra Colonial para a sua terra natal. Quando regressa o lugar mudou. A sua amada Júlia, interpretada por Maria Barroso, trocou-o pelo irmão e eventualmente Adelino conhece a intrépida Albertina, Isabel Ruth, por quem acaba por se apaixonar. A pesca deu lugar às máquinas e aqueles que partiram, como Adelino, podem ter regressado tarde demais para acompanhar a mudança.
Mudar de Vida é um constante diálogo entre o cinema realista e a poesia do local e do momento. O realismo de cenas como o remar dos barcos com a tripulação cantando e suando, qual documentário, os bailes da aldeia e as fábricas onde se trabalha mecanicamente horas e horas a fio, dão lugar a cenas belíssimas como o reencontro entre Adelino e Júlia – uma Maria Barroso proveniente da classe média e aqui interpretando uma mulher da província que descalça apanha caruma do chão com um ancinho – apercebendo-se que o seu amor Adelino chegou tarde demais e agora a vida avançou sem ele.
O filme está dividido em duas partes. A primeira, que trata a relação entre Adelino e Júlia, é poética e contemplativa, lenta, ao passo que a segunda, onde Geraldo Del Rey contracena com Isabel Ruth, é acelerada e emocionante. No fundo é como se Paulo Rocha realizasse dois filmes, mudando de filme como quem muda(r) de vida. Um retrato dos anos 1960 da província portuguesa que se sente nas personagens e no local, que funde a mudança de paradigma da calma das pescas e da agricultura para a industrialização com a mudança de ritmo do filme em si. Por vezes, este Mudar de Vida lembra-nos o cinema de Rosselini, em particular de Stromboli, onde Ingrid Bergman interpreta uma mulher da classe média que ao casar com um militar na cidade se vê forçada a partir para a terra natal do marido, na ilha de Stromboli, também uma pequena comunidade piscatória aqui isolada e perdida no tempo.
Não há dúvidas que Mudar de Vida é um momento importante do cinema português. Curioso é que aquando das suas primeiras exibições o filme tenha sido arrasado por toda a crítica portuguesa com excepção da ligada aos ideais anti-regime, ainda que essa crítica que o arrasou tenha dito que a segunda metade do filme até era boazinha. Já a primeira seria catastrófica… Está mal, pois claro.
A interpretação teatral de Maria Barroso, quando contraposta ao puro cinema de Isabel Ruth, que já havia protagonizado o primeiro filme de Paulo Rocha, Verdes Anos, dá uma identidade única ao filme, bem como o cunho do realizador nos extraordinários diálogos escritos juntamente com o poeta António Reis.
Portugal teve e tem cinema soberbo, só é pena que poucos o conheçam. Nos anos 60 havia Paulo Rocha. Hoje há Pedro Costa. Há que difundi-lo e pelo menos dar-lhe a oportunidade que tantos ao mesmo nível feitos no estrangeiro têm e que são igualmente bons. Infelizmente por cá vamos todos demasiado em Pátios de Cantigas, quando existiria sem dúvida espaço e público para todos os tipos de cinema nacional. Felizmente temos a Cinemateca Portuguesa, entre alguns outros espaços para ir revisitando estas nossas pérolas perdidas no tempo.
Texto de David Bernardino