
Flashback: O Comboio do Medo
William Friedkin é capaz de ser mais conhecido por filmes como “O Exorcista” ou “Os Incorruptíveis Contra a Droga”, dono de uma capacidade quase ímpar para desenvolver relações e personagens em géneros que careciam desse factor, é também o criador de um filme que injustamente não é citado como uma das suas melhores obras, falo de “O Comboio do Medo” (1977) remake de “O Salário do Medo” (1953).
Não é fácil de defender um remake, se calhar mais agora do que nos anos 1970 ou 1980, na altura também era algo de que se falava pouco e a engrenagem não estava tão bem oleada, eram mais ponderados e partiam da ideia de quem os fazia, não para capitalizar no êxito de bilheteira do original. “O Comboio do Medo” reconta a história de um grupo de homens que é contratado para transportar um carregamento considerável de nitroglicerina através da floresta sul-americana, a substância é volátil e o meio de transporte escolhido é o camião, escusado será dizer que há tensão que chegue e sobre para as 2 horas de duração do filme, mas há também muito mais que isso.
O filme começa com uma apresentação individual e descontextualizada das nossas personagens e como estas pessoas de nacionalidades e passados bem diferentes chegaram até uma pequena povoação na América do Sul. Com uma premissa tão forte que roça o conceito de «gimmick» é aqui que entra o engenho de Friedkin, não vamos direitos até à acção principal, enquanto espectadores somos convidados a participar no degladiar interior destes homens com motivações diferentes para poder ou não arriscar a vida no transporte de um explosivo tão inconstante como eles próprios. É um excelente exemplo da clássica estrutura em três partes: apresentação, escolha, execução.
Quatro homens seguem em dois camiões aos quais chamaram Sorcerer e Lazaro, no papel principal encontramos Roy Scheider, que já tinha participado com Friedkin em “Os Incorruptíveis Contra a Droga”, mas este foi o último reduto do realizador. Roy Scheider era um actor diferente, o homem comum que funcionava muito bem como actor secundário mas não para carregar um filme às costas, a ideia principal era atribuir o papel a Steve McQueen mas este só aceitava mediante condições pouco razoáveis e tanto Jack Nicholson como Clint Eastwood também recusaram participar no projecto. Para ajudar na alienação do público americano os restantes actores não eram nativos de língua inglesa e uma porção considerável do filme foi legendada, apesar de interpretações fortíssimas o filme foi quase esquecido até à redescoberta no mercado VHS e DVD.
Para ajudar a toda a atmosfera a banda sonora ficou a cargo dos germânicos Tangerine Dream que conseguiram traduzir na perfeição todos os elementos do filme, numa composição híbrida entre o orquestral e o electrónico ficamos quase desorientados entre a fantasia e a dura realidade onde todos os elementos visuais são sublinhados. O que torna as coisas mais curiosas é que a banda fez tudo a partir do guião, sem ter visto um minuto do filme, podia ter resultado muito mal e num revés espetacular saiu perfeito.
“O Comboio do Medo” é um ensaio sobre a natureza humana transvestido de filme de acção mas ao mesmo tempo não é nenhuma destas duas coisas. É uma história cativante, tensa e que fica connosco bem depois de termos visto o filme, consegue manter-nos investidos mesmo quando estamos a assistir ao desenvolvimento das personagens e esse é um feito difícil de conseguir. Arrisco-me a dizer que é um dos grandes filmes dos anos 70, discutivelmente a melhor década da 7ª arte.
Texto por José Santiago