Filho da Mãe & Ricardo Martins no Musicbox (19/02/2016)

Filho da Mãe & Ricardo Martins no Musicbox (19/02/2016)

#14 Filho da Mãe & Ricardo Martins

Fotos por Hugo Rodrigues

Prolíferos em colaborações, Rui Carvalho e Ricardo Martins são dois dos músicos mais proactivos e interessantes da praça lisboeta. Para um público mais atento, que infelizmente não ganha tanto corpo quanto aquele que provavelmente deveria, o duo faz parte daquelas duas mãos cheias de gente cujas aventuras musicais valem realmente a pena seguir, pela forma como segura e extravasa um instrumento musical.

Na guitarra, o Rui foi durante anos e há mais de dez uma das linhas de maior extravasar sónico de bandas aguerridas e barulhentas como os míticos If Lucy Fell, embora tenha conquistado justa e definitivamente grande sucesso bem mais recentemente, graças à sensibilidade do dedilhar solitário e acústico que assume com o cognome de Filho da Mãe. Em paralelo, o Ricardo ganhava relevo enquanto expansivo e incansável baterista dos Lobster, duo de ruído caótico e explosivo, e desde aí que não pára de criar – encabeçando a composição explorativa dos Cangarra, a emoção desgarrada dos Adorno, e a sua extensão mais recente e tropical, conhecida como Papaya, assim como os ainda jovens NOZ².

As influências e as boas companhias de ambos levaram a que as suas carreiras eventualmente se entrecruzassem, de forma descomprometida e natural, algures em 2010, quando integraram o alinhamento dos I Had Plans. Assumindo os rótulos de tudo o que há de pós no hardcore, sendo uma das últimas bandas da altura a explorar essa vertente, a banda lisboeta contava com um notável alicerce instrumental a suportar com uma exactidão quase matemática os vocais gritados de forma arranhada e fugaz. Lançados por uma editora alemã entretanto extinta, viriam a fazer jus ao nome, não acabando juntos o ano seguinte à formação. No entanto, foi aqui que os seus membros criaram raízes importantes entre si, e que se mantêm interligadas até hoje.

#10 Filho da Mãe & Ricardo Martins

Prova disso é o motivo que nos traz ao Cais do Sodré nesta noite fria de Fevereiro. O ambiente familiar é notório logo à chegada, quando passamos por um dos restaurantes da Rua Nova do Carvalho e espreitamos pela janela para encontrar praticamente todos os intervenientes desta noite a jantar. Atrás da mesa de som estará o Iúri, aquele que era o vocalista dos I Had Plans, e além de todos os outros, um dos convidados mais proeminentes será o Óscar, o outro guitarrista da banda, e que entretanto galgou o seu próprio caminho na música, na pele reptiliana do exótico JIBÓIA.

Através da editora vimaranense Revolve, Filho da Mãe e Ricardo Martins voltam a juntar-se de forma oficial numa edição que está a ser preparada há quase um ano, e que já conta com diversos concertos, a que chamaram de Tormenta. Tanto quanto sabemos, mantêm-se ambos tão activos como sempre – o Rui está prestes a lançar um novo álbum em nome próprio, o Ricardo está envolvido nos novos lançamentos de Papaya e JIBÓIA. Esta colaboração surge perante nós, não enquanto um novo rumo de exclusividade musical, mas como mais uma aventura do duo, um género de celebração de possibilidades da sua união, e do fim de tormentas passadas.

Em termos musicais, é também isso que se sente. Todo o álbum se faz assentar numa urgência taxativa, que desagua invariavelmente num tom contemplativo e positivo. Cada música tem uma narrativa similar, progressivamente mais ruidosa, fazendo-se diferenciar pela abordagem rítmica; se reconhecemos uma brita dançável em “Estrela e Acabada”, dominada pela infusão harmoniosa da bateria em relação à guitarra, somos levados à repetência melódica e hipnótica em “A Tia Dela”, ou aos contrapassos de “Truta Salmonada”, que não deve ser o melhor dos pratos a digerir, de qualquer das formas.

Em raiz, não é usual voltar a ver Filho da Mãe segurar uma guitarra eléctrica, embora a pedaleira e os dedilhares furtivos e seguros façam parte da sua identidade. A linguagem que desenvolve com o instrumento, pese o inuendo javardo, é sempre digno de assistência boquiaberta. Vê-lo de pé em palco é uma inovação por si mesma, ainda que das únicas que encontraremos.

#12 Filho da Mãe & Ricardo Martins

Ao vivo, a sua guitarra sofre com o encadeamento da reverberação de tantos efeitos, confrontada com o poderio musculado da bateria. A ordem pode até ser redefinida para Ricardo Martins e Filho da Mãe, de tamanha importância que ganha a espaços, subjugando as cordas para segundo plano. O Ricardo é um baterista tremendo, ainda assim, e segura a batuta com toda a segurança e mestria, convulsionando por entre as ondas e os efeitos. A música, essa, não traz muito de novo, e é pela expectativa não realizada que acaba por pecar. É desenvolta com naturalidade e descompromisso, explorando o vazio dentro das balizas criativas que os identificam, percorrendo até as referências que outras bandas dos mesmos círculos contemplam.

Resta a interpretação imaculada, a sinergia e simbiose que dois irmãos invejariam, e o puro clima de festa, para o qual contribuem Norberto Lobo, guitarrista de eclética formação e habilitações paralelas às do Rui, com quem já o vimos colaborar, ou a Cláudia Guerreiro, baixista de carreira comprovada nos Linda Martini e recente mãe do filho do Filho da Mãe, que deixa um momento fofinho quando abandona o palco com um beijo ao marido. Também entram os LAmA, projecto liderado por Shela, ex-If Lucy Fell e Riding Pânico, ou o já mencionado Óscar, fechando a noite. O público grita-lhes e sorri, dança e agita-se no emaranhado a espaços confuso e a espaços inebriante. A atmosfera familiar é sem dúvida a melhor característica de todo o concerto, em que os sorrisos se multiplicam e uma confortabilidade amena é desenvolta em plenitude, com amigos e conhecidos por toda a plateia. Cenário bonito e festivo, ainda que deixando mais a desejar – e como não ter um apetite gigante pelo trabalho de tamanhos titãs?

Designer e ilustrador a quem nunca ninguém disse que não sabe escrever. Neste momento dispõe de cerca de um metro e oitenta de altura e de uma conta bancária no negativo.